Infância traumática e vida adulta
- Flora Dominguez
- 19 de mar. de 2022
- 5 min de leitura
Atualizado: 22 de mar. de 2022
Muitas vezes tive a sensação de ter vivido várias vidas nessa vida. Foram tantas coisas que aconteceram comigo que poderia escrever vários livros. A minha infância foi traumática, minha adolescência mais ainda e a vida adulta extremamente complicada. Existem conversas que não podem ser jogadas para debaixo do tapete, sabemos que uma parte dos adultos não tem equilíbrio psicológico para criar filhos. Diante dessa realidade precisamos parar de negar que inúmeras barbaridades acontecem dentro do contexto familiar.
Sobreviventes de traumas sofrem de ansiedade persistente, fobias, pânico, depressão e inúmeros transtornos, mas se a pessoa traumatizada silenciar ou não tiver oportunidade de falar sobre o sofrimento será ainda mais extremo.
A psiquiatra e autora Lenore Terr é conhecida por suas pesquisas sobre trauma na infância, diz em seu livro: “Por que a natureza do evento traumático exerce tanta influência sobre se o que aconteceu será lembrado em palavras? Parece que eventos súbitos e rápidos superam completamente quaisquer defesas que uma criança pequena possa reunir. Eventos de longa data, por outro lado, estimulam operações defensivas — negação, divisão, auto-anestesia e dissociação. Essas defesas interferem na formação, armazenamento e recuperação da memória. Quando as defesas são completamente invadidas por um terror súbito e imprevisto, o resultado são memórias verbais brilhantes e excessivamente claras. Por outro lado, quando as defesas são estabelecidas antecipadamente para lidar com os terrores que a criança sabe que estão chegando, memórias verbais borradas, parciais ou ausentes são retidas. A criança pode até desenvolver amnésia geral por certos anos no passado.”
Existem memórias que só consegui acessar depois de quarenta anos. Estive numa busca incansável de muitos anos por respostas e graças a todo esse esforço de estudar e pesquisar obtive inúmeras explicações.
Hoje sei porque muitas situações me motivaram a querer morrer, me morder, me socar, arrancar os cabelos e tomar várias caixas de medicações, eu queria me desligar da dor que pulsava latente a todo instante. Uma frase da Lenore Terr fez muito sentido na minha jornada: "Uma vida inteira pode ser moldada por um trauma antigo, lembrado ou não".
O trauma da infância pode levar a uma vida adulta passada no modo sobrevivência, eu tinha medo de plantar raízes, de planejar o futuro, não conseguia confiar em nada e achava que não era merecedora da felicidade na minha vida, por isso não permitia a alegria entrar. Aceitar ajuda foi uma bênção. No entanto, foi uma decisão difícil dentro de mim, aquele lugar frio e solitário na minha mente era meu lar. Não é simples, mas é um dia de cada vez.
Qualquer coisa que as pessoas faziam me agredia de tal forma que quando parava para refletir, não conseguia compreender. Uma pessoa saudável sabe que as ações dos outros não têm nada a ver com ela. Na minha mente não era assim, já que a culpa não descolava de dentro de mim, eu me jogava de cabeça para sentir mais, mais e mais.
As pessoas sempre me perguntavam: "Por que você insiste em seguir o caminho mais difícil? Eu respondia: Por que preciso sentir que eu existo, que ainda faço parte dessa bagunça chamada vida, ainda não aprendi a ser diferente e nem sei se vou conseguir ficar sem esse desespero um dia".
Pesquisas feitas sobre experiências traumáticas como: abandono dos pais, humilhações verbais, abuso sexual, abuso físico, morte, prisão, presença de pessoas viciadas, todas essas situações vai lesar o cérebro que ainda está se desenvolvendo e essas pessoas terão propensão a doenças autoimunes, cardíacas, câncer, depressão, dores crônicas, mesmo que seja quarenta anos depois.
"O neurocientista Martin Teicher, o pediatra Jack Shonkoff, ambos da Universidade de Harvard, o neurocientista Bruce McEwen da Universidade Rockefeller e o psiquiatra infantil Bruce Perry da Child Trauma Academy descobriram que o estresse tóxico danifica a estrutura e a função do cérebro em desenvolvimento de uma criança".
Nossos corpos e cérebros foram danificados pelo impacto biológico do trauma, mas não tem que ser assim para sempre. Podemos usar a ciência ao nosso favor. Eu já estou nessa jornada há doze anos, essa jornada de cura é para sempre. Ela fará que possamos reduzir a suscetibilidade de nossos corpos a inúmeras dores e doenças.
Vamos analisar aqui tipos de traumas da infância com nuances diferentes:
•Pessoas que vivenciaram o abandono na infância são inseguras e desenvolvem a dependência emocional/codependência baseada no medo de serem abandonadas novamente.
• A violência doméstica leva crianças a terem explosões e a resolver seus conflitos familiares dentro da lei do mais forte. Infelizmente a consequência é as feridas emocionais de uma infância violenta, ela será transferida para a vida adulta e afetará a pessoa e seu ambiente, gerando homens e mulheres violentos.
• Crianças que são rejeitadas cria um processo de autorejeição. A dor emocional do passado é transportada para a vida adulta, eclodindo uma sensação de inadequação e incapacidade de lidar com a vida , o trabalho, a escola ou os relacionamentos amorosos. Essas pessoas vão preferir ficar sozinhas e isoladas.
•Desde cedo, as crianças têm a capacidade de avaliar se as situações em que estão envolvidas se são justas ou injustas, ou se estão sendo tratadas de forma desigual. Crianças que vivem em um ambiente muito injusto, o ego se deteriora gradativamente, fazendo com que as crianças pensem que não merecem atenção dos outros. Os adultos que sofrem desse trauma emocional podem se tornar muito inseguros devido à sua visão pessimista da vida. Essas pessoas terão dificuldade em confiar nos outros e construir relacionamentos, e na sua mente estará registrado que todos a tratam mal.
• Constantemente os pais prometem coisas e não cumprem e o fato de não cumprirem essas promessas cria um trauma na criança, um ferida emocional que fará com que ela acredite que as pessoas que estão ao seu lado não são confiáveis. Essa criança na fase adulta se tornará ciumenta, medrosa, compulsiva e cheia de incertezas e dúvidas.
• Toda criança humilhada e que é exposta a deboches com frequência quando adulta terá uma forte tendência à depressão e baixa autoestima. Muitos se lembram das situações humilhante que vivenciaram na infância e isso já te mostra a gravidade do trauma emocional na infância e como ele acompanha inúmeros adultos.
• As crianças precisam de paciência perante a ambientes desconhecidos, estimular as crianças a perder o medo dizendo que elas não precisam temer, não é o certo. A imersão violenta vai gerar pessoas inseguras, com medo da mudança e resistentes à diferença.
Existem traumas que, de acordo que você vai amadurecendo aprende a lidar, mas é aconselhável em caso de ter a vida afetada a melhor alternativa é fazer terapia para ajudar a superar os traumas.
No livro de Judith Lewis Hermann em seu livro Trauma and Recovery diz: "...o trauma repetido na infância forma e deforma a personalidade. A criança presa em um ambiente abusivo se depara com formidáveis tarefas de adaptação. Ela deve encontrar uma maneira de preservar um senso de confiança em pessoas que não são confiáveis, segurança em uma situação insegura, controle em uma situação terrivelmente imprevisível, poder em uma situação de desamparo. Incapaz de cuidar ou proteger a si mesma, ela deve compensar as falhas do cuidado e proteção dos adultos com o único meio de que dispõe, um sistema imaturo de defesas psicológicas".

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