Meu Corpo, Minhas Regras (E Minhas Contradições)
- Flora Dominguez
- 16 de dez. de 2024
- 3 min de leitura
O corpo é o primeiro lar, e talvez o único. A sociedade nos ensina a tratá-lo como um território a ser conquistado, invadido, corrigido, mas eu o vejo como um lugar a ser habitado. Sim, meu corpo tem história. Cada curva, marca e detalhe guarda memórias. É meu livro aberto, mas não para quem quiser ler. Nem tudo precisa ser público.
Meu corpo não veio com manual de instruções e, se tivesse vindo, rasgava na primeira página.
Lembro-me do desconforto de sentir que ele não era meu. Quantas vezes me olhei no espelho como se fosse estrangeira em minha própria pele? Tentando me ajustar, me dobrar, caber. E por quê? Porque há essa voz coletiva que nos ensina a pedir desculpas por sermos quem somos. A dobrar os ombros quando ocupamos espaço demais.
A vida me ensinou que as minhas estrias têm mais histórias pra contar do que qualquer capa de revista.
Ainda assim, há em mim a contradição. Grito que meu corpo é meu, mas às vezes o escondo. Celebro o direito de exibir minhas marcas, mas me incomodo com o olhar do outro. Já estive nesse duelo entre a liberdade e o medo – entre ser vista e ser interpretada. Porque o corpo não é só carne; é também narrativa, linguagem. E ele sempre diz algo, mesmo quando queremos silêncio.
Já percebi que viver no corpo de uma mulher é como estar num reality show onde todo mundo acha que tem o direito de opinar. "Você tá muito magra!", "Nossa, engordou, hein?
E há dias em que as regras que criei para mim mesma me sufocam. "Seja livre", eu digo, mas o que faço com o peso da liberdade? É uma conquista, mas também uma responsabilidade. Ser livre exige coragem para lidar com os olhares que julgam, com as palavras que insistem em nos encaixotar.
Que decote é esse?". Decote, minha filha, é a janela da alma em formato de tecido. Uso porque gosto, porque quero, e porque, sinceramente, é o meu corpo, e nele mando eu.
Há momentos de cansaço. Quando, depois de tanto lutar por autonomia, percebo que ainda me incomodo com a opinião alheia. Não porque ela define quem sou, mas porque atravessa. O corpo sente. E essa é a sua beleza e a sua vulnerabilidade: ele nunca é imune.
Só que também não vou fingir que sou feita de ferro. Tem dias em que eu olho no espelho e penso: "Será que se eu fosse diferente, mais parecida com o que esperam, seria mais fácil?" Contradição pura.
Aprendi que habitar o corpo é um ato político. Recusar-se a corresponder às expectativas de um mundo que tenta nos disciplinar é uma forma de resistência. É permitir que ele seja imperfeito, cansado, potente, eufórico. É acolher suas contradições, porque, no fundo, elas são humanas.
Ah, mas não me venha com papo de perfeição. Perfeição é coisa de quem tem medo de viver de verdade.
E aqui estou eu, com minhas regras e minhas transgressões. Cobro-me, mas tento perdoar-me. Insisto na liberdade, mas aceito a vulnerabilidade. Não busco ser resposta; quero ser pergunta. Porque o corpo, mais do que um manifesto, é um mistério. E não cabe ao mundo decifrá-lo.
Quer que eu fique em silêncio? Esquece. Eu falo, grito, canto, e, às vezes, desafino. A vida é um show, e eu sou a estrela principal.
Meu corpo não é uma prisão nem uma bandeira fixa. Ele é casa, mas também estrada. Ele é história, mas também recomeço. E, no fim, ele é meu. Inteiro. Contraditório. Vivo.
Texto escrito pela Psicanalista Flora Dominguez

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