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O Corpo que Não Cala

Ela andava pela cidade com passos firmes, mas ninguém sabia o quanto tremia por dentro. Seus olhos carregavam um silêncio ensurdecedor, uma sombra de dor que a sociedade preferia não enxergar. Quando ela falava quando finalmente ousava gritar diziam que era louca. "Descontrolada", murmuravam pelas esquinas, com olhares que a despiam mais do que qualquer mão invasora.


Seu nome era Maria, mas poderia ser qualquer nome. Poderia ser aquele nome que você ouve na fila do supermercado, ou o nome que ecoa em conversas abafadas entre vizinhos. Poderia ser um nome que você esqueceu, porque é mais fácil esquecer quando a verdade é dura demais. Maria carregava a marca de algo que o mundo não estava preparado para lidar: o fato de ter tido seu corpo violado. E ao invés de acolher sua dor, a sociedade a afundava ainda mais no abismo de sua própria angústia.


Ela tentou seguir em frente, manter a compostura, se recompor. Mas como se recompõe algo que foi destroçado em pedaços tão pequenos que mal se pode juntar? Como colar os estilhaços de uma vida despedaçada? Seus dias eram preenchidos por um vazio gritante, e sua mente, antes lúcida e clara, foi sendo inundada por ondas de revolta, de raiva, de medo. E então, finalmente, quando já não podia mais segurar, ela explodiu.


No trabalho, no meio da rua, na fila do banco — não importava o lugar. Quando alguém lhe dizia que "era hora de superar" ou que "era só deixar pra lá", ela respondia com a única arma que ainda tinha: sua fúria. "Vocês não entendem?", gritava com a voz embargada, os olhos encharcados de uma dor crua, visceral. "Vocês não sabem o que é ter o corpo tomado, ter a dignidade arrancada. Vocês não sabem o que é viver com o toque de um monstro impregnado na pele!"


Mas ao invés de ouvirem sua dor, eles a rotulavam. "Ela está desequilibrada", diziam. "É louca." E com essas palavras, descartavam-na como se sua raiva fosse o problema — e não o ato que a desencadeou. Ninguém queria falar sobre o homem que a violentou. Ele continuava a viver sua vida, intocado, como se nada tivesse acontecido. Como se o crime tivesse desaparecido no momento em que Maria parou de ser "a vítima" e se tornou "a descontrolada".


A sociedade, aquela que se orgulha de sua moralidade e de seu senso de justiça, estava mais preocupada em manter o status quo do que em confrontar o horror do que havia acontecido com Maria. Era mais fácil fingir que ela era o problema, que seu comportamento explosivo, sua raiva incontrolável, era o sinal de que havia algo de errado com ela. Não com o homem que a destruiu. Não com o sistema que permitiu que ele ficasse impune.


Nos tribunais da vida, a hipocrisia reinava. Os mesmos que se diziam defensores das "boas condutas", que condenavam atos imorais, viravam os rostos para longe de Maria. Preferiam chamá-la de louca do que olhar para o agressor com olhos de condenação. Era como se, de alguma forma, sua raiva pela violação de seu corpo fosse mais perturbadora do que o próprio ato de violação. E assim, ela foi perdendo espaço, voz, dignidade.


Aos poucos, Maria percebeu que sua raiva, embora legítima, estava sendo usada contra ela. Cada palavra que gritava, cada vez que se permitia chorar em público, tornava-se mais uma prova para os outros de que ela "não estava bem". E enquanto ela tentava juntar os pedaços do que restava de si, as pessoas ao seu redor se preocupavam mais em manter a fachada de normalidade, essa normalidade podre e injusta.


Um dia, sentada em uma praça qualquer, Maria viu um grupo de crianças correndo e brincando. Uma delas caiu e começou a chorar. A mãe correu até ela, envolveu-a nos braços e disse: "Está tudo bem, você está segura agora". Maria olhou para aquela cena e sentiu um aperto no peito. Ela nunca teve esse tipo de abraço. Não quando chorou pela primeira vez após o abuso. Não quando tentou explicar o que havia acontecido. Não quando, aos prantos, implorou por justiça.


"Quem vai me abraçar?", ela sussurrou para si mesma, sentindo as lágrimas escorrerem silenciosamente pelo rosto. "Quem vai me dizer que está tudo bem? Que eu estou segura?" Mas não havia ninguém. Ninguém que ousasse se aproximar, porque para muitos, ela era o espelho de uma realidade que preferiam não ver.


Aos olhos do mundo, o criminoso era invisível, camuflado no tecido da sociedade, enquanto Maria se tornava o alvo visível de uma dor que não sabiam como lidar. Ao invés de punirem o verdadeiro culpado, preferiam silenciar aquela que ousava lembrar-lhes de que a violência não terminava no ato ela continuava, ecoava, se perpetuava nas camadas de culpa e negação que a sociedade jogava sobre as vítimas.


Maria não queria ser vista como louca. Ela só queria ser ouvida, compreendida. Queria que alguém olhasse nos seus olhos e dissesse: "Você não está sozinha. O que aconteceu com você foi uma injustiça, um crime, e sua raiva é justa". Mas a verdade é que esse tipo de validação era raro demais. Porque vivemos em uma sociedade que prefere calar a boca das mulheres que gritam sua dor do que reconhecer que a verdadeira loucura está em um sistema que protege os culpados e silencia as vítimas.


Naquele dia, Maria se levantou da praça, enxugou o rosto e seguiu em frente. Talvez ela nunca conseguisse a justiça que merecia. Talvez continuassem a chamá-la de louca. Mas dentro de si, sabia que sua raiva era a expressão mais pura de sua humanidade. E, por mais que a sociedade tentasse silenciá-la, sua voz, de alguma forma, sempre encontraria uma maneira de ecoar. Porque o corpo que foi violado também tem o direito de se levantar e gritar: "Eu existo. Eu sinto. E não vou mais ser silenciada."


A culpa Não é sua! A culpa Não é nossa!


Crônica escrita pela Psicanalista Flora Dominguez



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©2022 por Flora Dominguez

e Celso Araújo

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