top of page
Post: Blog2_Post

O Medo que Persegue as Mulheres no Rio de Janeiro

A reportagem do Brasil de Fato, publicada em 27 de junho de 2024, destaca o preocupante aumento da violência contra as mulheres no estado do Rio de Janeiro. Dados do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC) revelam que, entre janeiro e abril de 2024, houve crescimento nos casos de estupro (+1,1%), feminicídio (+11,8%) e tentativas de feminicídio (+44,8%). Na capital, os números são ainda mais alarmantes: estupros aumentaram 18,4% e tentativas de feminicídio 78,6%.

O estudo também aponta aumentos significativos em diversas Áreas Integradas de Segurança Pública (AISP) da cidade. Por exemplo, na Tijuca, os casos de estupro cresceram 121,4%, enquanto no Recreio as tentativas de feminicídio aumentaram 200%.

As autoras enfatizam a necessidade urgente de campanhas de prevenção, responsabilização dos agressores e elaboração de políticas públicas eficazes. Destacam que a segurança pública não é responsabilidade exclusiva do governo estadual; prefeituras também podem contribuir significativamente. Medidas sugeridas incluem melhorias na iluminação pública, já que a falta de iluminação é uma das principais causas de insegurança entre as mulheres, conforme relatório da ONG ActionAid Brasil. Além disso, propõem programas de geração de emprego e renda, com prioridade para mulheres chefes de família, e a ampliação de unidades das Casas da Mulher Carioca, que oferecem cursos de capacitação, atendimento psicológico e orientação jurídica para vítimas de violência.

As autoras concluem que, diante do aumento da violência de gênero, é essencial fortalecer iniciativas da sociedade civil e implementar políticas públicas estratégicas para proteger as mulheres e combater a violência.


O estupro é a rasura de um território íntimo, onde o corpo deixa de ser casa e torna-se ruína, habitada por ecos de uma violência que jamais se apaga. Flora Dominguez

O Estupro


O estupro não é apenas uma violência física; é uma violação que penetra as camadas mais profundas do ser. Ele arranca algo que não pode ser facilmente devolvido, um senso de segurança, uma conexão com o próprio corpo, a confiança no mundo ao redor. Mais do que um ato de dominação, é uma anulação do outro como sujeito, uma tentativa brutal de reduzir a existência de alguém a nada além de um objeto a ser usado.


O peso dessa violência não termina com o ato em si. Ele se prolonga no silêncio, no medo de falar, no julgamento social que recai sobre quem foi vítima. “Onde ela estava?”, “O que vestia?”, “Por que não gritou?”. Essas perguntas são punhais travestidos de curiosidade, armas que reforçam a solidão de quem já sofreu mais do que deveria suportar.

O estupro deixa marcas que vão além da pele. Ele ressoa na forma de memórias intrusivas, ansiedade, medo constante. Cada passo dado depois do trauma é um exercício de força, uma tentativa de reconstruir algo que parecia inabalável: a própria identidade. É o corpo que carrega o trauma, que reage, que grita por dentro mesmo quando o mundo exige silêncio.


Falar sobre estupro é reconhecer a responsabilidade coletiva de criar um ambiente onde essa violência não seja tolerada, onde as vozes das vítimas sejam ouvidas sem dúvidas ou julgamentos. É entender que o problema não é o que a vítima fazia ou vestia, mas a cultura que permite que alguém se sinta no direito de invadir, de destruir.

A reconstrução depois de um estupro não deve ser solitária. Precisa ser apoiada, validada, reconhecida. Porque o que foi tirado nunca deveria ter sido perdido. E é dever de todos nós ajudar a devolver, mesmo que não seja possível apagar.


O estupro é a interrupção brutal da existência, onde o outro é silenciado e transformado em objeto, carregando no silêncio o peso de uma culpa que nunca foi sua. Flora Dominguez

O feminicídio é o ato final de uma violência que começa muito antes. Ele não surge do nada; é o desfecho de uma história escrita com controle, abuso e negação do outro como sujeito. É uma tentativa brutal de apagar a existência da mulher, de silenciar sua voz, de extinguir sua presença no mundo. É mais do que um crime contra uma vida; é um ataque contra a liberdade de todas as mulheres.


Quando uma mulher é assassinada apenas por ser mulher, o que está em jogo não é apenas a vida que se perde, mas o que essa perda simboliza. É a expressão de uma sociedade que, muitas vezes, aceita ou ignora sinais de alerta. Os gritos abafados por anos de negligência, as pequenas mortes que acontecem antes da grande: o isolamento, a desumanização, o medo.


O feminicídio não ocorre apenas nos extremos. Ele é cultivado nas sutilezas: no olhar que desautoriza, no gesto que subjuga, na palavra que fere. É a ponta do iceberg de uma cultura que ainda tenta controlar corpos, destinos, escolhas. É o silêncio da vizinhança, a omissão das autoridades, a perpetuação de uma lógica que insiste em diminuir.


Mas o feminicídio não deve ser visto apenas como um fato trágico e isolado. É um espelho da sociedade em que vivemos. Quando uma mulher é assassinada, todas morremos um pouco. Morre a esperança de um futuro onde o medo não dita as regras, onde o gênero não define quem vive e quem morre.

É preciso romper com o ciclo. Escutar os silêncios, proteger as ameaçadas, agir antes que o fim chegue. Porque o feminicídio não é inevitável. Ele é o resultado de escolhas e de omissões que podemos mudar.


O feminicídio é a tentativa brutal de apagar a existência da mulher, como se sua vida fosse um desafio intolerável à lógica de controle e submissão. Flora Dominguez

Campanhas de Prevenção:


Campanhas de prevenção não são apenas ações para evitar tragédias; são gestos de reconhecimento da humanidade do outro. Elas precisam ir além da superfície, tocando nas raízes de uma cultura que normaliza a violência, questionando padrões e rompendo silêncios.

Prevenir é ensinar que o corpo do outro não é território a ser invadido, que consentimento não é detalhe, mas fundamento. É falar de respeito de forma clara, desde a infância, e oferecer às mulheres não apenas a chance de sobreviver, mas de existir plenamente, sem medo.

A prevenção é um chamado coletivo. Ela exige políticas públicas, mas também atos individuais: escutar sem julgar, acolher sem questionar. Cada campanha é um convite à transformação, uma chance de redesenhar uma sociedade que proteja e valorize as vidas que nela habitam.


Prevenir é reconhecer que cada gesto de cuidado com o outro é também um ato de reconstrução daquilo que fomos ensinados a ignorar: a vulnerabilidade como espaço sagrado. Flora Dominguez

Responsabilização dos Agressores:


Responsabilizar os agressores é mais do que aplicar a lei; é afirmar que a violência não será tolerada, que cada ato contra o outro é um rompimento inaceitável do pacto humano. É uma declaração de que viver em sociedade implica limites, e que ultrapassá-los exige consequências que devolvam ao tecido social a justiça que foi rasgada.


A responsabilização não deve ser vista apenas como punição, mas como um ato de reparação. É olhar nos olhos do agressor e dizer: "Você não pode se esconder atrás do silêncio da vítima, nem se proteger na indiferença da sociedade." É obrigá-lo a encarar o peso do que fez, não como uma mera transgressão individual, mas como um reflexo de um sistema que ainda permite, silencia e normaliza a violência.


Quando o agressor não é responsabilizado, a mensagem que se transmite é perigosa: a de que a dor da vítima não importa, de que sua luta é solitária, de que o mundo se move sem olhar para os danos causados. Nesse vazio, perpetua-se a ideia de que a violência é inevitável, como se fosse apenas mais uma parte do cotidiano. Mas não é. Não pode ser.

Responsabilizar é também educar. Mostrar que cada ato de violência é uma escolha, e que essa escolha tem consequências. É romper com a narrativa de impunidade que permite que o ciclo continue. É dar voz à vítima, reconhecer sua dor e reafirmar sua dignidade.


A responsabilização é o primeiro passo para reconstruir um mundo onde a violência não encontre lugar para se enraizar. É um ato de coragem e de respeito, uma resposta firme a cada tentativa de desumanizar o outro. Porque tolerar o intolerável é ser cúmplice. E essa cumplicidade deve acabar.


Responsabilizar os agressores é devolver à sociedade o compromisso com a justiça, afirmando que nenhuma violência será silenciada ou esquecida. Flora Dominguez

Elaboração de políticas públicas eficazes:


Elaborar políticas públicas eficazes é muito mais do que preencher relatórios ou construir programas; é uma forma de escuta. Escutar as dores que ecoam nas ruas, nos lares, nos silêncios das vítimas que não conseguem mais falar. É um exercício de humanidade, de olhar para o outro como um reflexo do que a sociedade precisa enfrentar e transformar.

Políticas públicas não são apenas ações governamentais, são pactos de responsabilidade coletiva. Elas precisam nascer do entendimento de que a violência não surge de um ato isolado, mas de um sistema que permite sua continuidade. Precisam ir além da reação, criando espaços de prevenção e proteção, onde a mulher não seja apenas protegida, mas reconhecida em sua autonomia, em sua dignidade.


Para serem eficazes, essas políticas devem ser criadas a partir das histórias reais, dos dados que não são apenas números, mas vidas. Cada ação precisa estar enraizada na prática, no acesso que alcance aquelas que estão mais vulneráveis, que vivem nas periferias, nos cantos esquecidos das cidades e nos labirintos emocionais que a violência constrói. Eficácia não é só uma palavra técnica; é o impacto concreto. É garantir abrigos para quem precisa fugir, atendimento psicológico para quem precisa se reconstruir, e justiça para quem teve sua existência violada. É educar, transformar, prevenir. É iluminar as ruas e as consciências.


Mas a eficácia das políticas não se mede apenas em resultados. Mede-se no quanto conseguimos romper o ciclo, devolver às pessoas a capacidade de sonhar, viver e respirar sem medo. Porque cada política pública eficaz é uma ponte: entre o que somos e o que podemos ser, entre o presente marcado pela violência e um futuro que insiste em resistir. Construí-las é um ato de coragem. De amar, enfim, o outro como a si mesmo.


Iluminar as ruas é acender a coragem de caminhar sem medo, devolvendo às mulheres o direito de existir plenamente, mesmo na noite. Flora Dominguez

Melhorias na iluminação pública:


Melhorar a iluminação pública é mais do que colocar luzes nas ruas; é devolver às pessoas o direito de caminhar sem medo. É transformar a noite em um espaço onde o corpo não precisa se encolher, onde os passos não ecoam como alertas de perigo. É permitir que a escuridão deixe de ser um território de ameaça e volte a ser apenas o que é: a pausa da luz.


A iluminação pública é, de muitas formas, um ato de cuidado coletivo. É um gesto silencioso de proteção, uma mensagem clara de que cada caminho iluminado é um convite à segurança. Porque a escuridão, embora natural, tem sido cúmplice de silêncios, omissões e violências. É nela que tantas histórias de medo se desenrolam, que tantas vidas se tornam invisíveis.


Instalar postes de luz não é apenas uma questão técnica; é um reconhecimento de que cada espaço urbano pertence às pessoas, e não ao medo. É uma forma de dizer que as ruas são de quem caminha por elas, que o espaço público é para existir, não para se esconder. A luz quebra o silêncio da noite, expõe o que antes ficava oculto, e traz de volta uma sensação de pertencimento.


Mas melhorar a iluminação não resolve tudo. É um primeiro passo, um gesto que precisa ser seguido por outros. É um símbolo de uma sociedade que escolhe não fechar os olhos para os espaços que negligenciou. Porque iluminar não é só clarear; é transformar. É devolver às mulheres, aos corpos que ocupam o espaço público, a liberdade de existir sem medo.

E cada lâmpada que se acende é um ato de resistência, um sinal de que as trevas, tanto reais quanto simbólicas, não têm a última palavra.


Reflexão final:


No fim, toda reflexão é um espelho. Não aquele que apenas devolve a imagem, mas um que permite ver o que está por trás, o que fica oculto nas sombras do cotidiano. Falar sobre violência, justiça, proteção, não é apenas falar do outro, mas também de nós mesmos. O que toleramos, o que silenciamos, o que escolhemos não enxergar.

A violência contra as mulheres não é apenas um problema individual; é um sintoma de algo maior, mais profundo. É o reflexo de uma cultura que ainda insiste em transformar corpos em objetos, em negar subjetividades, em calar vozes. Cada caso de feminicídio, de abuso, de invisibilidade é um grito abafado pela indiferença, pela normalização de comportamentos que deveriam nos envergonhar.


E, no entanto, não podemos ficar apenas no campo do lamento. Refletir é também agir. Não agir no impulso, mas com a consciência de que cada passo, cada escolha, cada política, cada gesto importa. A transformação é lenta, muitas vezes dolorosa, mas é possível. Não porque seja fácil, mas porque é necessária.

Olhamos para as ruas escuras, para os silêncios cúmplices, para os sistemas falhos, e pensamos: como chegamos aqui? Mas, mais importante do que isso, precisamos perguntar: para onde queremos ir? Que mundo queremos construir a partir dos destroços que encontramos? A resposta não está nas grandes soluções mágicas, mas nos pequenos atos de resistência: ouvir uma mulher, acolher sua história, responsabilizar o agressor, iluminar os espaços. Cada gesto é um tijolo na construção de um futuro onde a violência não tenha mais lugar.


Refletir é, acima de tudo, não desistir. É acreditar que há uma outra possibilidade, mesmo quando tudo parece dizer o contrário. Porque no espelho da reflexão não enxergamos apenas o que foi; vemos também o que ainda pode ser. E isso é, talvez, o que nos mantém de pé. A esperança de que, apesar de tudo, podemos fazer diferente. Podemos ser luz no meio da escuridão. Podemos ser a mão que acolhe, a voz que denuncia, o coração que não se cala.


Artigo escrito pela Psicanalista Flora Dominguez


Referências:

Brasil de Fato. Violência contra as mulheres: casos de feminicídio e estupro aumentam no Rio de Janeiro em 2024. Publicado em 27 de junho de 2024. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2024/06/27/violencia-contra-as-mulheres-casos-de-feminicidio-e-estupro-aumentam-no-rio-de-janeiro-em-2024. Acesso em: [15 de novembro de 2024].


Comentarios


  • Facebook
  • Instagram

©2022 por Flora Dominguez

e Celso Araújo

bottom of page