Porque não consigo deixar meu abusador ir embora?
- Flora Dominguez
- 20 de set. de 2024
- 4 min de leitura
Às vezes, nos encontramos presos em relações que nos causam mais dor do que alegria. Perguntamo-nos, em silêncio ou em voz alta: "Por que não consigo deixar meu abusador e ir embora?" A resposta não é simples, mas é essencial explorá-la para recuperar nossa liberdade emocional.
Primeiramente, é importante reconhecer que o vínculo com o abusador não se forma da noite para o dia. Muitas vezes, é construído sobre bases de manipulação, dependência emocional e baixa autoestima. O abusador pode ter se apresentado inicialmente como alguém afetuoso, atencioso, conquistando nossa confiança e amor. Com o tempo, porém, começam a surgir comportamentos controladores, críticas constantes e até violência, seja ela física ou psicológica.
A dependência emocional é um dos principais fatores que nos impedem de romper com esse ciclo. Quando nossa identidade e valor pessoal estão profundamente entrelaçados com a presença do outro, o medo da solidão pode parecer insuportável. Acreditamos, erroneamente, que sem essa pessoa não seremos capazes de seguir em frente, que nossa felicidade depende exclusivamente dela.
Além disso, há o fenômeno da normalização do abuso. Depois de vivenciar situações dolorosas repetidamente, podemos começar a enxergá-las como parte "natural" da relação. Isso distorce nossa percepção do que é aceitável, levando-nos a tolerar comportamentos que jamais deveríamos aceitar. O medo das consequências, como represálias ou julgamentos de terceiros, também atua como uma barreira invisível.
Outro aspecto crucial é a esperança de mudança. Agarramo-nos à ideia de que, com paciência e amor, o outro poderá se transformar. Alimentamos expectativas baseadas em momentos bons do passado ou em promessas vazias, ignorando o padrão contínuo de abuso. Essa esperança pode nos manter estagnados, adiando a decisão de partir.
Para romper esse ciclo, é fundamental reconectar-se consigo mesma. Isso implica reconhecer o próprio valor, independentemente da aprovação alheia. Desenvolver a autoestima não é um caminho fácil, mas é o alicerce para construir relações saudáveis. Buscar apoio profissional ou de pessoas de confiança pode ser um passo decisivo nesse processo.
Também é necessário enfrentar os medos que nos paralisam. A solidão pode ser assustadora, mas é preferível a uma companhia que nos destrói. Aprender a desfrutar da própria companhia e encontrar satisfação em atividades independentes fortalece nossa autonomia emocional.
Lembre-se de que merecemos respeito, amor e consideração. Nenhuma justificativa é válida para aceitar menos do que isso. Romper com um abusador não é um ato de egoísmo, mas de amor-próprio. É um movimento corajoso em direção a uma vida mais plena e equilibrada.
Finalmente, é importante perdoar a si mesma pelas vezes em que toleramos o intolerável. O passado não pode ser mudado, mas o futuro está em nossas mãos. Cada passo dado em direção à liberdade é uma vitória pessoal, uma afirmação de que somos dignas de uma existência livre de abusos.
A jornada pode ser desafiadora, mas a recompensa é inestimável: a recuperação de nossa dignidade e a possibilidade de construir relações baseadas em respeito mútuo e amor genuíno. A decisão de partir é o primeiro ato de um novo capítulo, onde somos os protagonistas da nossa própria história.
Relato Clínico:
Como psicanalista, acompanhei o caso de Rosa (nome fictício para preservar a identidade da paciente), uma mulher de 32 anos que buscou terapia para encerrar um relacionamento abusivo. Rosa chegou com sintomas de ansiedade, depressão e baixa autoestima. Relatou que estava em um relacionamento de seis anos com Magno(nome fictício), durante o qual sofreu abusos emocionais e psicológicos. Magno a isolava de amigos e familiares, desvalorizava suas conquistas e a fazia sentir-se responsável pelos problemas da relação.
No início, Rosa acreditava que podia mudar Magno com seu amor e dedicação. Justificava seus comportamentos agressivos como resultado do estresse ou de problemas do passado dele. Contudo, com o tempo, percebeu que estava perdendo sua identidade e felicidade. Sentia-se presa, mas ao mesmo tempo incapaz de deixar o relacionamento.
Exploramos, então, sua história de vida e descobrimos que Rosa tinha um padrão de relacionamentos onde assumia o papel de cuidadora, muitas vezes à custa de seu próprio bem-estar. Sua infância foi marcada por um ambiente familiar instável, onde frequentemente precisava mediar conflitos entre os pais. Essa dinâmica a levou a acreditar que o amor estava associado ao sacrifício e à tolerância ao sofrimento.
Durante a terapia, trabalhamos na identificação dos mecanismos inconscientes que a mantinham ligada a Magno. Discutimos o conceito de "compulsão à repetição", onde ela, inconscientemente, recriava situações do passado na esperança de resolver conflitos não superados. Rosa reconheceu que buscava nos parceiros a validação e o afeto que não recebeu adequadamente na infância.
Um ponto crucial no processo terapêutico foi quando Rosa começou a fortalecer sua autoestima. Incentivei-a a retomar atividades que lhe davam prazer e a reconectar-se com amigos e familiares. Também trabalhamos na construção de limites saudáveis e no reconhecimento de seus próprios desejos e necessidades.
Com o tempo, Rosa ganhou confiança para confrontar a realidade de seu relacionamento. Compreendeu que não era responsável pelas ações de Magno e que merecia respeito e amor genuíno. Decidiu, então, terminar a relação. Embora temesse a reação dele, sentiu-se apoiada por sua rede de apoio e pelas estratégias desenvolvidas na terapia.
Após o término, Rosa enfrentou sentimentos de culpa e dúvidas, mas continuamos trabalhando juntas para reforçar sua decisão e promover sua autonomia emocional. Ela começou a visualizar um futuro onde poderia ser feliz sem depender da aprovação de um parceiro.
No decorrer das sessões, notei uma transformação significativa em Rosa. Demonstrava mais segurança, expressava suas opiniões com assertividade e estava aberta a novas experiências. Reconheceu a importância de priorizar seu bem-estar e de estabelecer relacionamentos baseados em respeito mútuo.
Este caso exemplifica como a compreensão dos processos psicanalíticos pode auxiliar indivíduos a romperem com ciclos prejudiciais. Ao trazer à consciência os padrões inconscientes que a mantinham presa ao abusador, Rosa pôde ressignificar sua história e construir um novo caminho para si mesma. Sua jornada é um testemunho do poder da terapia na promoção da saúde mental e emocional.
Texto escrito pela Psicanalista Flora Dominguez ❤️

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